O frio batia nos vidros pedindo para entrar. O que podíamos fazer?
O frio entra. Se vai bater, ou não, pouca diferença faz.
E assim que entrou, instalou-se pelo quarto. Era junho, não podíamos evitar.
O que podíamos ter feito?
Bem, a história começa com 3 tragos em um baseado depois de muitos
drinks.
O que veio a seguir foi um misto desconexo de diálogos que nos
embrulharam no edredom.
Deitados na cama, ele me perguntou se eu estava colocando-o no lugar de
alguém. Eu sorri.
-Claro que estou! O tempo todo estou colocando alguém no lugar de outro
alguém.
-Eu não quero estar no lugar de alguém. Quero meu lugar exclusivo.
Era ciumento e temperamental.
Sentei-me e ele deitou-se em meu colo, os dois com frio apertando-se um
contra o outro.
-Mas eu sou assim. Eu entrego meu coração para alguém. Aí, um dia a
pessoa o quebra, eu junto algumas partes e faço um novo. E deixo o espaço vago
para alguém entrar.
Ele passou um braço por cima da minha barriga e outro por baixo das minhas
pernas.
-Não faça isso! Guarde seu coração para você!
Comecei a chorar. Ele não entendia o que estava me pedindo.
-Não faz parte da minha natureza. Eu sou assim, um feitor de corações. Entrego;
junto os pedaços; faço outro, entrego; e assim vou vivendo. Sempre com novas ilusões,
novos corações.
Passou a mão pela minha barriga.
-O que você espera que as pessoas façam quando você chora?
Passei a mão por seus cabelos recém-cortados.
-Abrace-me, acaricie-me. Beije-me. Peça para eu parar de chorar...
-Não vou fazer nada disso!
Apertou minhas coxas.
-Por que não?
-Porque não sou assim.
-Devo seguir chorando?
-Faça o que você quiser.
Pensei que o frio vinha da própria cama. Ou seria o frio falando
comigo?
-Pena, achei que você seria alguém para quem eu daria meu coração.
-Já disse, guarde seu coração para você.
Desci para dentro do edredom. Ele me abraçou com força.
-Você guarda o seu tão bem porque tem medo!
-Não tenho medo de nada!
-Tem sim! Covardes guardam seus corações. Têm medo de que descubram
suas fraquezas.
-Eu não tenho fraquezas.
Apertou meu mamilo esquerdo.
-Tem sim, você é humano.
-Você está me colocando no mesmo saco que todos os outros.
Sorri.
-Você está no mesmo saco que os outros. Somos todos iguais. Todos
querem ser amados. Achar a pessoa certa. Ter um cumplice.
-Eu saí de casa aos 16. Sou muito independente.
Virou-se.
-Abrace-me. Tenho frio.
-Mas, você é independente. Para que precisa que eu te abrace?
Virou o rosto. Aqueles olhos, quase verdes, ficaram imóveis, fixos nos
meus. Vi brasas saírem de dentro.
-Eu sou independente.
Abracei-o. Passei a mão direita sobre o contorno de seu corpo de dança.
-Você não é independente, nem esconde seu coração tão fundo assim.
-Eu não quero ocupar o lugar de outro. Quero o meu!
Ele não percebia que o lugar já era dele. Nem notou que seu coração
estava muito mais exposto do que pensava.
Quanto ao meu coração?
Bem, meu coração ardeu nas brasas daquele olhar.
O senti como um vaso de barro no forno, mudando a forma, expandindo,
contraindo.
E naquelas pupilas, negras bailarinas imóveis, vi seu coração.
Pulsando, expandindo, contraindo. Quase em minhas mãos.
O frio entrou, mas o calor dos beijos o mandou embora.
Era junho, o que podíamos ter feito?