Explicações!

Andei um bom tempo egoista. Escrevi só pra mim e só eu saboreei meus textos. E quando menos esparava e vindo de onde eu menos esperava, me cobraram explicações: "Tu abandonou o blog?"
Não, mas achei que ninguém mais lia.
Agora que sei que alguém lê, volto a publicar minhas confusões mentais.
Aproveitem (ou não).
Sal.

Fofocas.

A mosca voava por cima das comidas. Melhor, as moscas voavam por cima da comida. Eu estava sentado no degrau sob o batente da porta ouvindo a conversa. Às vezes desconfio que eu fosse invisível. - Como assim? Ela sabia que ele era casado? - Sabia. Sempre soube. - Mas que puta. Gente, como pôde ser tão vagabunda? - Dizem que ela sabia e ainda fazia questão de dizer que ela tinha o homem que queria. Até os casados. - Tá, mas a mulher dele sabia? - Sabia. Sempre soube. - E não falava nada? - Não. Ela era uma coitada. Dizia que tinha medo de o marido ir embora e deixar ela criar as três crianças sozinha. Volta e meia se viravam para minha direção, como se fizessem menção em me inserir na conversa. Algo do tipo “você sabia disso?”. Mas nunca falaram comigo. Uma continuou a lavar a louça e a outra a fumar seu cigarro. - Tá, mas e daí? Como chegamos a essa situação? - Qual? - Essa, de ele ter matado as duas? - Ah, disse a vizinha que tudo começou no dia em que a esposa criou coragem e foi na casa da amante do marido. - Meu Deus, Virgem Maria! Ela foi? - Sim. Ai, dizem que bateu na porta. A outra abriu e convidou ela pra entrar na maior calma. Os vizinhos ficaram todos esperando para separar qualquer briga. Mas uma hora depois, saiu a esposa e foi embora. - Gente, não estou entendendo. Mas afinal, por que ele matou as duas? Eu me levantei e resolvi caminhar para a janela que dava sobre a pia. Mas achei melhor ficar ali mesmo, ninguém ia me notar. Elas me olharam novamente, uma pegou o pano de prato e a outra jogou o cigarro em cima da louça suja. - Então, acontece que naquele dia, no dia que a esposa foi na casa da amante, elas se apaixonaram. - Não, pára tudo! Pára o mundo que eu quero descer. Subir, pensava eu. Parem o mundo para ela subir. - Duas mulheres apaixonadas? - Sim. - Uma pela outra? - Sim, amiga, sapatas. Você acredita? - Jesus, Maria José. O mundo está perdido. Tá, mas ah, então o marido descobriu? - Sim, mas dizem que não foi por isso que ele matou as duas e se matou. - Não? Como assim? - Então, quando ele descobriu que elas eram amantes. Porque foi assim mesmo, elas se tornaram amantes e a amante não quis mais ele. - Claro ela descobriu que gostava de outra fruta. Safada. - Então, a amante meteu o pé nele. Disse que não queria mais. E não explicou nada. Dizem que ele quis fazer escândalo, mas a amante muito esperta disse que se ele incomodasse contava tudo para mulher dele. - Gente, esperta né? - Muito, mas ai elas tiveram um caso por nove meses. Enquanto ele e a amante ficaram só dois meses. - Tá, mas ai eu me perdi. Porque mesmo ele matou as duas e se matou? - Então, o teu marido não contou nada? Eles eram melhores amigos. - Não, eu nunca nem toquei no assunto. Eles brigaram um pouco antes dessa história. - Dizem que um dia alguém mandou uma carta pra ele, avisando que a mulher dele estava indo todos os dias na casa da ex-amante dele. Ai, ele perguntou pra ela e ela falou que ia embora morar com a amante. - Amante dele? - Não, né. Amante dela. Ex-amante dele. Eu sabia que logo eu teria que dizer algo. Estava insuportável ouvir aquela conversa sabendo de toda a verdade. Estiquei o braço pra dentro da cozinha, peguei um papel e um lápis e comecei a desenhar para manter meu controle. - Hum. Ai ele não aceitou. - Aceitou. Pior é que aceitou. Foi ai que ele veio falar com teu marido. - Ah, eu sei. Nesse dia eu tava na casa da mãe fazendo pamonha. Foi o dia que eles brigaram. Acho que ele disse que ia matar ela e o Pai não deixou. Ela não estava em casa, mas eu estava com o Pai em casa. Nunca entendi porque ela o tratava assim. Nunca entendi. Isso sempre me confundiu. Ela diz que ele quis ser chamado de Pai quando ela engravidou. Aos doze anos achei que era a forma mais fácil, porque ele nos amava da mesma forma. - Hum. - Tá, mas o que dizem? - Olha amiga, o povo faz muita fofoca. - Eu sei, adoro fofoca. - Você sabe que eu sou tua amiga de infância, né? - Ué. O que tem a ver com isso? - Não sei se devo contar? - Já começou, agora termina. - Então, dizem, o povo fala demais, mas dizem que ele veio aqui na frente. - Hum. - E que ele falou pro teu marido que ele também tinha o direito de ser feliz. - Sim. Ele tinha mesmo. - É... e ele disse que se a mulher dele ia morar com outra mulher, ele também podia morar com outro homem. - Ah. Então por isso o Pai brigou com ele. Porque ele virou viado. - É... Acho que foi... Nessa hora não pude mais me conter. Levantei do degrau da porta. Segurei o lápis com toda minha força e disse: - Ele não disse isso! Ele foi muito claro. Ele disse que se a mulher dele podia ser feliz com outra mulher, ele também podia ser feliz com a pessoa que ele sempre amou, mesmo que fosse outro homem e que era a hora do Pai dizer a verdade pra senhora. Ela deixou o prato despencar no chão. Amiga deu meio sorriso cínico e depois fez cara de espanto. Eu em pé na porta quebrei o lápis de tanta força. E já que tinha conseguido falar, resolvi falar o que nunca pude. - E isso não deve ser novidade pra senhora. Eu venho dizendo desde uns cinco anos que o Pai me faz uns carinhos estranhos. Cinco anos, Mãe! Eu tenho treze. E os carinhos deixaram de ser estranhos pra serem comuns. Ele faz comigo a mesma coisa que faz com você. Quando não faz com você, porque sua cabeça dói, ele faz comigo. Que não posso reclamar. Você sempre soube. Ela tonteou de vez, derrubou todas as louças do escorredor no chão. A amiga agora sim tinha cara de pavor. Como quem não acredita no que ouve, que nem sabe como contar pro resto da cidade. - Você não pode mentir isso do Pai! - Mãe, por que eu mentiria. Nem o amigo dele mentiu. O único que mente aqui é ele. E a senhora, se continuar acreditando nele. - Menino, você tem noção do que está... do que está... ai meu Deus... ai Jesus... - Calma amiga, calma. Ai Misericórdia. Eu percebi que ela chorava de vergonha por amiga saber, pela cidade saber, mas jamais ia chorar por nunca ter acreditado em mim. Era isso que ela dizia para a amiga enquanto eu me afastava, que ia ficar falada. Eu fui embora da cidade naquele mesmo dia. Nunca mais voltei. Já me sentia forte para encarar os Pais do mundo. Soube muito tempo depois, ouvindo outra fofoca dessas de viajantes, que uma esposa tinha matado o marido, a amiga e se matado na minha cidade. Acho que foi ela. Quanto ao marido que matou a ex-esposa e ex-amante, nunca me esqueci de seus olhos quando saiu da frente da minha casa. Ele não suportou não ser tão feliz quanto elas seriam. E com o Pai ele jamais seria. Nunca fiquei feliz por amores terminarem em desgraça, mas nesse caso... nesse caso sou obrigado a dizer: - GRAÇAS A DEUS!

cinzas cores

Sentado a beira do altar ele chorava. Não eram simples lágrimas de quem se sente só. Eram lágrimas de quem voltou a ser só.
Praguejar Deus, nem isso adiantaria. Não, nunca existiu nenhum deus.
Todos foram mortais. Toda crença é mortal.
Não existe alma. Não existe amor. Existe solidão. Ao menos agora é tudo o que ele enxerga.
Um enorme vazio. Uma escuridão para andar.
Voltou seus olhos para os vitrais.
Cores não havia lá.
Era uma soma de variantes cinzas e formavam a imagem de uma mulher.
Sorriu. Ele viu a imagem dela. Nua, despedaçada, colada em vidros.
Cores não havia lá.
Voltou a chorar quando se percebeu nu.
Vestiu-se. Cueca, meias, calça, camisa, sapatos.
Vestiu-se de variantes cinzas.
Sentado enquanto colocava os sapatos olhou para o teto.
Anjos corriam. Pinturas desgastadas.
Pensou em tromba-tromba de anjos. Imaginou penas e auréolas esvoaçantes pelo céu.
Sentiu-se só.
Frio.
Apático.
Morto.
Levantou-se vagarosamente como se fosse feito de pó.
Ao pó tudo volta.
Começou a caminhar rumo a porta.
Fileiras de bancos dançavam em seus olhos.
Eram as lágrimas confundindo a imagem?
Deu cinco passos. Pensou ouvi-la.
Parou. Sentiu o calor voltar a seu corpo.
Viu cores pelas paredes.
Os sinos tocaram.
Os anjos quietos o observavam.
Uma pena caiu do céu.
Ele virou-se.
Olhou o vitral colorido.
Uma profusão de cores combinadas formavam a imagem de uma mulher tocando seu seio.
Os bancos se jogaram contra as paredes.
Ele pensava que agora sim ela entraria pela porta lateral.
Seu coração batia, batia, batia.
Tum-tum. Tum-tum. Tum-tum.
Tirou as mãos úmidas do bolso.
Apertou uma contra a outra.
Estava se preparando para sorrir.
Secou o rosto no ombro.
A porta se abriu?
A porta se abriu!
Uma brisa entrou trazendo uma pena.
A pena deu duas voltas pelo céu como se guiasse seus olhos.
Ande, apareça.
A pena caiu. Apenas o ar entrou. Tomou seu lugar no cenário e parou.
As cores caíram de todos os lados.
As cores inundaram o chão e escorreram pelas frestas.
Ele virou-se para a porta central.
Era uma soma de variantes cinzas.
Bateu a porta com força e jogou-se no mundo.
1 minuto.
2 minutos.
3 minutos.
5 minutos.
10 minutos.
15 minutos.
Ela entrou pela porta.
Trazia nas mãos a mala. O vestido sujo de barro e a esperança de que ele a tivesse esperado.
Sentou-se e esperou. Ele nunca voltou. Ela nunca saiu.
Eles se tornaram a soma de variantes cinzas.