Mais um cigarro.
O vinho, sem rolha, bebo direto da garrafa.
A solidão vem sorrateira.
Sem convite, senta-se.
Frente a frente, sorri cínica.
Finjo não vê-la.
Sigo chorando.
O passado passa pela mente.
A solidão abre seus dentes brancos no escuro.
Fecho os olhos.
Ela segue, entre as pálpebras.
Não pretende ir embora.
Começo a contar.
Paro no 33.
Ela me olha pudica.
Em sua expressão, vejo a desaprovação.
Fixo meus olhos nela.
O vinho escorre por um canto da boca.
Ela procura por algo.
Tira do longo vestido uma caixinha.
Estende um braço e me alcança.
Sem saber o que fazer, pego com cuidado.
Abro-a e vejo dentro um coração pulsando.
Intrigado, pergunto de quem é.
Sempre cínica, faz sinal para eu olhar de perto.
Aproximo o olho direito da caixa.
A pouca luz dificulta.
Começo a ver no coração muitos rostos.
Reconheço muitos.
Um a um, sorriem.
Então, a solidão me pega pela mão.
Vagarosa, me leva para a cama.
Deito-me. Ela me cobre.
Senta-se ao pé da cama e finalmente diz:
-Só saio quando alguém chegar!
Suspiro!
Entendo que ela vai ficar por muito tempo.
Não há quem chegará.
Não há quem voltará.
Ninguém, além dela.
Penso no pequeno coração.
Suspeito ser meu.
Pequeno como uma concha.
Imagino que eu esteja me fechando.
Por isso ela tenha me entregue um coração tão pequeno.
Não adormeço.
Pergunto, a ela, a quem pertence.
Ela não mais sorri,
Voa sobre a cama.
Prende-me com suas mãos frias e lambe meu rosto.
Só depois sussurra em meu ouvido:
-O coração é minha metáfora, seu bobo. Não existe amor como você espera.
Não existe ninguém que te complete. Se você achar um coração desse tamanho,
será em um rato!
Seu hálito gelado me faz chorar ainda mais.
Ela, impiedosa, segue:
-Você nunca foi amado! Eu estive com você todo o tempo. Fui sempre eu que
dormi com você!
Berro. Ninguém ouve?
Ela sai de cima de mim.
Volta ao pé da cama.
Fica mexendo no vestido e me olhando.
-Nunca? Pergunto.
Ela faz que não com a cabeça e seus longos cabelos negros.
-Mas...
Ela reforça, com sorriso irônico, movendo a cabeça lentamente.
Aperto a colcha sobre mim.
Aos poucos, as lágrimas cessam.
Desisto de brigar com a solidão.
Afinal, como um deus, lá está ela aos pés de todos que dormem.
Rindo dos que estão em pares.
Debochando dos que estão sós.
Sempre mexendo em seu longo vestido de tule negro.
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